Carey Mulligan, Lily Gladstone, Margot Robbie, Annette Bening, Emma Stone e Greta Lee (Foto: Austin Hargrave)
Tirei esses dias de Carnaval para assistir aos filmes indicados ao Oscar que ainda não tinha visto. Aliás, falar que “vou ver os filmes do Oscar” é, para mim, uma abreviação de um pensamento muito mais elaborado e por isso mesmo mais longo. Acompanhar o que a Academia de Hollywood selecionou para ficar entre os cinco mais em diversas categorias não é a garantia de ver o melhor, mas é entender a linha de raciocínio que os votantes estão seguindo, o que estão valorizando, quais são os queridinhos da vez, quem segue sendo unanimidade e por aí vai. É como um editorial de primeira página que os jornais publicam quando querem expressar sua opinião. Os indicados e os vencedores acabam criando entre si esse elo, que nos permite fazer uma leitura de cenário, de tendência, mesmo que muitas vezes apontem -ou não- para o blockbuster do momento. E, sem dúvidas, a questão da mulher, com todos seus contornos, é um tema em comum entre a maioria dos filmes.
De cara, assim que saiu, assisti a Oppenheimer no cinema. Fui abduzida pela interpretação do Cillian Murphy em Peaky Blinders, com seu amado e odiado Tommy Shelby, por isso queria vê-lo na tela grande, sem interrupções. O filme é ótimo, tudo feito no capricho, com uma história incrível, elenco perfeito e aquela mão de diretor-midas que o Cristopher Nolan tem. Mas filme de menino-homembranco-donodomundo. Depois assisti Anatomia de Uma Queda na abertura da Mostra de Cinema de 2023. Filmaço. Esse sim um filme para mulheres, para aquelas que convivemos com o vitimismo insuportável masculino e nos identificarmos e torcermos pela mãe, escritora, mulher talentosa e resiliente que está sendo julgada. A atuação do garoto, filho do casal, Milo Machado-Graner na vida real, é marcante.
Os filmes às vezes têm núcleos internos, o que faz a gente se interessar mais por um deles e ter vontade de acelerar quando entra na parte do outro. No caso de Anatomia, isso não me aconteceu. O próprio roteiro obriga as personagens principais a se isolarem, e suas histórias vão sendo contadas em paralelo. Confesso que muitas vezes a parte do garoto, que poderia ser secundária, foi a que mais me agradava. Paro por aqui, porque mais que isso vira spoiler.
Depois vi Vidas Passadas. Um filme sensível. Tenho muito a falar sobre ele, mas estou me afastando do objetivo desse texto, então volto a ele outra hora. Nesse Carnaval, por enquanto, vi Assassinos da Lua das Flores (AppleTV) e Barbie (HBO). Assim nessa ordem.
Não gostei de Assassinos da Lua das Flores. Nem todos os filmes de guerra, holocausto, crianças mal-tratadas e crimes hediondos que assisti na vida me deixaram tão angustiada como esse. Que história cruel. Não a conhecia, e já achei absurdo não ter ouvido falar dela antes. Fico imaginando, sem a menor comprovação histórica, que foi mais ou menos em situações como essas que os rednecks -os conservadores americanos- passaram a existir com toda essa carga de preconceito, ódio e abuso que associamos a eles. Sr. Martin Scorsese pegou seu alter-ego Robert De Niro e o seu segundo preferido, o Leonardo DiCaprio, e deu a eles os personagens verídicos mais escrotos do cinema. E eles são atores tão maravilhosos e o Scorsese é tão meticuloso, que aquela maldade me afetou de fato. Entrei de cabeça na história. Nem consegui ver o filme de uma vez, não porque ele é longo, mas porque não dava. Precisei ir pro Google, buscar entender se o Scorsese estava exagerando ou se era aquilo mesmo. Quando li e descobri o desfecho, aliviei um pouco, tirei o peso do coração e consegui terminar. Foi difícil. Por isso não gostei. Jamais esquecerei desse filme. Óbvio que ele é sensacional como cinematografia. Mas foi sofrido demais para mim.
O que ampliou a dificuldade em seguir assistindo, sem desligar e mandar tudo às favas, é a personagem da Lily Gladstone, a osage Mollie Burkhart. Lily já ganhou todos os prêmios a que concorreu até agora com essa atuação e merece mais. Vai levar o Oscar. Ela me lembra muito, tanto na atuação como fisicamente, a meiga Melanie Hamilton, interpretada por Olivia de Havilland, em E O Vento Levou. Tanto Mollie quanto Melanie passam boa parte da história deitadas, enfermas, e vamos acompanhando suas aflições minuto a minuto, torcendo para que se recuperem. Melanie foi amada, até a prima explosiva Scarlett O’Hara lhe tratava bem, apesar de amar seu marido. Já Mollie…
Selecionei umas imagens para dar razão a essa minha teoria de que são personagens parecidas:
Mollie e sua irmã Anna
Melanie com penteado e leque iguais ao de Mollie
Hi, Barbie!
E dois dias depois dessa angústia, vi Barbie para aliviar. Considerei ver Barbie no cinema quando estreou, mas as filas me espantaram. Todo mundo me perguntou se eu tinha visto, como se fosse mais ou normal que eu me interessasse. Claro que eu queria ver, mas os dias passavam e eu não via. E a verdade é: eu gostei de Barbie. Eu gosto da Barbie. Eu só tive uma Barbie na vida, que andava de bicicleta (eu não sei andar de bicicleta, e a minha Barbie sabe!), e ganhei essa boneca quando já estava parando de brincar. Eu fui daquelas que amavam a Susi, antes da Barbie ganhar o Brasil. A verdade é que eu amo boneca, brincar de boneca e tenho várias. Tentei muito que as crianças próximas de mim gostassem de bonecas, mas nada. Eu amo o universo da Barbie e esse mundo pink, cor-de-rosa, tons pasteis -candy colors- e fofurices do gênero. E foi isso o que mais me encantou no filme. É uma graça ver aquelas coisinhas que faz a diversão da brincadeira, a cozinha, o armário, as roupas e o carro da Barbie representadas no cenário. É tão bem feito, tão bem sacado. Delícia.
Mas e o feminismo, não foi por isso que te perguntavam se você viu Barbie?
Sim, claro, o feminismo está lá. Bacana demais ter essa defesa de que a Barbie possibilita que as meninas sejam o que elas quiserem ser. Bacana demais também terem assumido que a figura da Margot Robbie é a Barbie estereotipada, a imagem que temos quando pensamos em Barbie. É real. Parece que os roteiristas pegaram todas as opiniões dos haters e responderam tudo a altura. Achei bom mesmo. Sempre fui feminista, menos por pensar no feminismo, mas mais por defender e brigar e me indignar e xingar quem não vê o óbvio, de que temos os mesmos direitos, enfim, o básico do básico.
Fico feliz quando vejo Hollywood com toda sua força ridicularizar o patriarcado, os estereótipos masculinos que incluem TV grande na sala, cavalos, pick-ups, músculos e muita cerveja. É engraçado. Mas também é maniqueísta. O final dá uma equilibrada e tenta se redimir para não ser Barbie no céu e Ken no inferno ou vice-versa.
A primeira vez que me perguntaram o que eu achava sobre a situação da mulher no ambiente de trabalho, eu respondi o que me veio na hora, sem ter tido até ali muita elaboração sobre o assunto. Essa conversa aconteceu em 2001, no Freedom Forum, em Buenos Aires, em um curso chamado “jovens lideranças femininas nas redações de jornais da América do Sul”. Eu estava lá representando a Folha. E o que eu falei foi meio na contramão do que as outras mulheres, mais conhecedoras e estudadas no tema, defendiam. E, de maneira um pouco mais bem pensada, afinal já se passaram muito mais de 20 anos e o assunto ainda é O assunto de nós mulheres, eu continuo achando quase a mesma coisa. A mudança que tanto queremos, o respeito, o fim do preconceito, o acesso irrestrito, depende do apoio e da empatia dos homens. Eles precisam fazer parte da nossa luta para que ela aconteça na prática. A polarização é ruim. Eu só queria ter a Casa do Sonhos da Barbie, mas não é por isso que o Ken tem de ficar sabe Deus onde (essa parte do filme, quando ela se dá conta de que o Ken nem tinha um lugar para ficar, é ótima).
Que bom que Barbie conseguiu colocar esse tema dessa maneira escancarada e que tenha sido um sucesso de bilheteria. Acho curioso que o Ryan Gosling (o Ken original) concorra a ator coadjuvante, e nem a Margot (a Barbie estereotipada, encarnada e neo feminista) nem a Greta (diretora) estejam concorrendo. Acho injusto e ruim. Honestamente, não acho que Barbie merece melhor filme. A estrondosa bilheteria merece ser reconhecida, como foi no Globo de Ouro. A Margot nasceu para ser a Barbie, mas não acho que seja interpretação para Oscar de melhor atriz. O Ryan só está lá porque concorre a ator coadjuvante.
Minha torcida para a noite do Oscar é que ele não ganhe, o De Niro ou o Downey Jr (Oppenheimer) merecem mais, são melhores etc outros argumentos fáceis. E que Barbie leve o de roteiro adaptado (difícil…) e todos os outros prêmios técnicos a que concorre. E que a Greta e a Margot subam ao palco nesses momentos e façam um grande discurso sobre como Hollywood segue sendo antiquada e que fizeram uma grande bobagem ao indicar o Ken e não a Barbie. Não pela atuação do Ryan, mas pelo que isso significa no contexto: um filme de empoderamento feminino que reconhece um homem. Mais uma dessas contradições dos votantes.
Lily Gladstone, como já disse, vai levar o de melhor atriz. A personagem que ela interpreta existiu em carne e osso. É uma mulher osage, povo originário da região de Oklahoma (EUA), que viu suas irmãs serem assassinadas por um delírio surreal de ganância extrema. Por isso acho que Assassinos é um filme também feminista. Se a Barbie representa a objetificação da mulher, com Mollie, é a nulidade. A Barbie é mulher-troféu, que se quer possuir e exibir. Mollie é a mulher que vale mais morta do que viva, que se quer descartar, mesmo que ela seja mãe, mesmo que ela seja visionária e sagaz, mesmo que ela seja carinhosa e cuidadora e mesmo que seu marido a ame. Dois filmes interessantes, com abordagens diferentes sobre o machismo e que gritam por uma reparação histórica para as mulheres de todas as épocas e em todas situações.